Hoje, no dia dos trabalhadores e trabalhadoras, quero falar um pouco sobre minhas atividades de intérprete na música.
O ofício de intérprete, que venho com imenso prazer praticando há mais de trinta anos, nem sempre me parece condignamente valorizado. Algumas pessoas têm uma noção um pouco limitadora do ato de “apenas” cantar. Nesse tempo todo, senti por vezes os efeitos desse tipo de (pre)conceito que vem junto com uma espécie de “classificação de importância”, de magnitudes atribuídas a cada artista pela mídia e/ou formadores de opinião e que acaba se traduzindo, sobretudo, numa diferenciação de tratamento e, portanto, de espaço de divulgação. A própria existência do artista para o público, seu alcance, sua permanência, relevância e a possibilidade de ampliação de sua esfera de atuação, decorrem em boa medida de um respaldo crítico, de validação, de alguma confirmação de qualidade. Nessa armadilha da “relevância” ou “mérito”, os juízos sempre serão limitados, claro, mas têm o poder de influenciar opiniões. Há artistas muito valorizados em detrimento de outros, segundo a apreciação de certos indivíduos ou grupos, em determinadas épocas. Nesse sentido, o trabalho dos compositores, qualificado de “autoral”, em geral goza de muito mais deferência e atenção. Aliás, essa classificação parece ignorar que a interpretação é, antes de mais nada, um exercício intenso de (re)criação, o que também é autoria. Intérpretes e compositores são todos “autores”, numa certa medida. São categorizações que se estabelecem e demoram pra se redefinir, se modificar. Porém, os pontos de vista mudam com o tempo, assim como as pessoas e os valores. O cancelado ou esquecido de hoje, poderá ser o reconhecido de amanhã – e vice-versa.
Creio que essa diminuição de crédito em relação ao intérprete masculino se acentuou sobretudo por vivermos num tempo em que as cantoras têm tido maior repercussão, despertando um interesse superior ao que desfrutam seus pares masculinos. Parece haver uma mudança em curso, mas essas preferências ainda apresentam seus traços e efeitos. Para as mulheres compositoras, por exemplo, igualmente não tem sido fácil angariar mais atenção. Sem esquecer, evidentemente, de segmentos inteiros que sofrem de fortes apagamentos, como ocorre com as culturas de matrizes indígenas e afro-brasileiras.
Mas, voltando ao ofício do cantor-intérprete, é preciso enfatizar que ele não é trivial e muito menos carece de um grande poder criador; muito ao contrário. Por diversos motivos, cantar, por si só, é algo complexo que demanda algum talento e bastante prática. Interpretar é elaborar o cantar, é juntar aos atributos vocais e à técnica algo ainda mais poderoso, que é a emoção, aquilo que amplia sentidos e dá vida à música em toda a sua gama de complexidades. Como cada voz tem suas dinâmicas, suas cores, seus realces, expressividades e momentos, cada intérprete é único. Há os que são um pouco mais contidos em suas performances – o que no jargão por vezes se denomina como “cool”. Há outros mais passionais e arrebatados. Há alguns teatrais, outros sóbrios, econômicos. Há os que são mais transportados pela música, outros especialmente pela letra etc. Mas essas também são classificações que, se ajudam a compreender um pouco dessa diversidade, são superficiais, imprecisas e restritivas. Tudo é bastante mais profundo e rico do que isso.
Há, para o intérprete, todo um processo de elaboração que vem desde os mais recônditos impulsos e intuições, passando por uma triagem de ideias e desejos que são filtrados através de escolhas criteriosas. Isso diz respeito, por exemplo, a optar por determinadas obras e compositores, à consideração da relevância que elas podem ter num determinado contexto/trabalho musical, a implementar a elaboração de um show através de formulações, de entendimentos, visões e conceitos, de representações do mundo a partir de letras e músicas, de um sem fim de caminhos que se tem que percorrer para finalmente chegar em algo que precisa ainda ser lapidado, que necessita da prática para se realizar e, sobretudo, se aperfeiçoar. Chegar na forma de se “dizer” algo ao cantar, nas ênfases, no modo de emitir a voz, em tantas e tantas nuances possíveis, tudo isso faz parte de uma construção que não é, em nada, evidente ou trivial. E é só quando se está à frente de uma audiência que começa de fato o exercício maior da interpretação, quando tudo o que formou esse processo se materializa em vocalização, presença e gesto, em música. Aí, com nossa emoção aumentada, é que se aprende com ela a discipliná-la sem perdê-la. E, como se não bastasse tudo isso, a voz, esse instrumento frágil, porque orgânico, muda incessantemente, podendo estar forte e vibrante num dia e cansada e abatida no seguinte.
Finalmente, para que nós mesmos, os cantores, fiquemos contentes e satisfeitos ainda será necessário incrementar essas práxis, pois são elas que nos farão ampliar as possibilidades de melhor executar aquilo que o nosso instinto, lá atrás, nos indicou como promessa de uma realização brilhante, de um acabamento superior.
Agora, quando começo a lançar finalmente minhas próprias canções, percebo ainda com maior clareza o quanto essa percepção e essa atividade da interpretação está no cerne do fazer musical. Tirando isso, o que sobra são quase que apenas os efeitos da técnica. Me parece que só há música, de fato, se há interpretação, que fazer música é, antes de mais nada, interpretar.
Vivam todos os trabalhadores e todas as trabalhadoras!
Vivam aqueles que têm a sorte de poder executar tarefas que são menos pesadas de se levar, que cultivam e aprimoram suas vocações e que, portanto, podem mais facilmente fazê-los crescer espiritualmente sentindo prazer.
Mas vivam ainda mais aqueles que, por não terem tido essa felicidade, são obrigados a realizar trabalhos indesejados apenas para poder sobreviver: merecem a nossa admiração e, acima de tudo, uma remuneração e um tempo de descanso que possam atenuar um pouco esse infortúnio do destino.
foto: Claudio Etges