O fim do ano e o fim do mundo

Eis de novo o fim do ano, quando um misto de melancolia e esperança toma conta de nossos corações e tendemos a refletir um pouco mais sobre o que vivemos e sobre como queremos viver.

Gosto da sugestão de um sentimento coletivo de fraternidade, de um encadeamento de afetos que a expressão “nossos corações” sugere e que de certa forma se instaura em nós como ideal, de tempos em tempos. Apesar disso, ainda estamos longe de conseguir alcançar e cultivar de fato esse estágio de evolução anímica. Nos imbuímos coletivamente desse anseio por um mundo melhor como se isso, por si só, pudesse fazer com que ele se materialize, mas sem refletir intensamente sobre o quão genuíno é esse estado de espírito e ao que ele serve.

Sem esperança não venceríamos nem mesmo o impulso mais básico do autoaniquilamento e uma vontade assim, de avanço e aperfeiçoamento, é uma coisa bonita. Porém, sendo apenas representações de anseios e promessas, nossos desejos só poderão se cumprir quando acompanhados de condutas que os efetivem — afinal, é pela associação do espírito com o gesto que simples expectativas ou pensamentos vagos se concretizam.

Mas, então, até onde pretendemos ir, em termos de reflexões e atitudes, para que o mundo verdadeiramente atinja o grau de aprimoramento e bem-estar que os nossos corações apontam e desejam? E, mais do que isso, a quem incluímos nesses nossos bons augúrios?

Satisfazer-se com melhores condições de vida apenas para si, para os seus ou para determinadas porções da sociedade — além de mesquinho, injusto e, em certa medida, perverso —, é uma prova de insciência. Não há sustentação para um tal estado de contentamento (como ser feliz cercado pela privação e a infelicidade alheias?), muito menos garantias de perpetuação desse conforto e tranquilidade, pois nada jamais está dado. Recursos, poder, saúde, não há o que se perpetue, não existe princípio ou lei que possa assegurar a ventura de uns em detrimento de outros. Tudo muda constantemente e a roleta da fortuna só obedece a seus próprios caprichos e ao acaso — é a mera casualidade que decide quem fica e quem parte, quem “tem”, quem “mantém” e quem “perde” o que quer que seja. Essa é a justiça inexorável da existência da qual ninguém escapa.

Apenas a garantia de direitos básicos para todas as pessoas — e mesmo para as outras formas de vida — poderá tornar esse “viver melhor” mais plausível, amplo, equânime. Num cenário assim, em que se deixam de lado caprichos egoístas, pode haver maior equilíbrio e paridade, a segurança de um mínimo de condições, de dignidade e de cuidado através do auxílio das estruturas sociais coletivas.

Viver bem é, fundamentalmente, usufruir de uma boa alimentação, ter saúde, acesso à educação e à cultura, se beneficiar de equidade na justiça, partilhar de condições respeitáveis e benéficas de vida e de trabalho. E significa, também, lutar para que outras espécies possam igualmente gozar da existência com as condições que lhes são essenciais. Tudo isso é básico e vital. Jamais será possível “viver bem” enquanto se acumularem, mundo afora, restrições e males e, embora não possamos varrer toda a crueldade e desigualdade do mundo, sabemos que poderíamos diminuí-las imensamente — e é nossa obrigação fazê-lo, nós os humanos, os “racionais”.

Porém, não há como conquistar esse abrandamento das dores sem antes reavaliar nossos fundamentos, convicções e, sobretudo, nossas práticas. Pra isso, é preciso que se enfrente e se questione — individual e coletivamente — os significados e os resultados de nossos procedimentos e modos de vida. Antes de tudo, compreender e reconhecer o quanto nós, espécie humana, nos transformamos numa verdadeira praga que assola o planeta e o consome de forma ávida e inescrupulosa, e que também grande parte da prosperidade que desejamos para nós esbarra num altíssimo custo, que são os contínuos sofrimento e morte de outras inúmeras espécies, a aniquilação de incontáveis ecossistemas e, a passos largos, do próprio meio ambiente.

Então, não é apenas “a felicidade” que teimamos em destruir — com nossas práticas danosas, nosso sistema de vida nocivo e viciado e nosso egocentrismo —, mas também a nossa própria possibilidade de permanência nesse maravilhoso planeta que coabitamos. Grande parte de nossos “bens” só é possível de ser obtida a partir de grandes “males” que infligimos a outras vidas. Hoje, o planeta se esgota em termos de recursos para nos suprir, de forma incessante e indiscriminada, daquilo que o furor descontrolado da sociedade capitalista demanda. É preciso lembrar que tudo — absolutamente tudo! — sai de algum lugar da natureza, que todas as coisas possuem matérias-primas naturais em sua constituição e que elas provêm de algum ecossistema. É assim que acontece: para que possam ser gerados os infindáveis “bens” que a espécie humana teima em colecionar e usufruir de forma irracional e desenfreada, muita vida é destruída. Nossos prazeres fugazes e insaciáveis — como por exemplo os de se acumular e trocar continuamente de objetos, ou se lambuzar eterna e insaciavelmente da matéria gordurosa da carcaça de animais —, causam um impacto atroz na natureza, a tal ponto de conseguir desequilibrá-la. E quem, hoje, não tem consciência disso?

Há pouco tempo, assisti a um filme que me pareceu oferecer a mais perfeita resposta para a grande questão que nós, seres humanos, sempre nos colocamos: QUAL O SENTIDO DA VIDA? Nele, sabiamente, é uma criança quem revela a um adulto que o significado da existência se dá pelo CUIDADO; que estamos aqui, mais do que tudo, para nos interessarmos, nos responsabilizarmos, nos preocuparmos e nos encarregarmos de nosso próprio ambiente e dos outros seres que precisam de nós; estamos aqui para defender o equilíbrio, a delicadeza e a fragilidade da vida e suavizar as dores da existência; estamos aqui para tratar, tomar conta, olhar, tutelar, atender e velar por outros entes; estamos aqui para zelar pela vida, seja ela qual for. Ela, em toda a sua cadeia, exige e só se mantém por esse cuidado mútuo, esse compromisso, essa dedicação. Não há sentido mais pleno e nobre do que esse e, para muitos, ele se chama simplesmente AMOR.

O fim do ano chegou. Mas o fim do mundo só virá se continuarmos dando as costas a essa grande missão. Que nesse intento empenhemos nossa força e nosso afeto.

Ilustração: bico de pena de 1994.

11 comentários em “O fim do ano e o fim do mundo”

  1. Dudu querido, seu texto, como alguns outros que tive oportunidade de ler nesses dias nos remete a uma grande reflexão. Não tá mais na hora de atitudes levianas , de oba oba, de foda- se.
    Se a gente não mudar nossa relação com o outro e com o planeta, a gente vai durar pouco, e mal…
    Criemos uma resistência. Aí pode estar o que chamamos de esperança. Feliz 2023 ( porque 2022 não tem muita chance ).

    1. pois é, Miroca, há caminhos possíveis, mas de fato todos passam por resistência e também por insistência em mudar o que precisa ser mudado. acreditemos. até porque, não nos resta outra alternativa. feliz 2022… e 2023! 😉

  2. Que texto lindo e necessário! Obrigada por compartilhar. Sabes combinar as palavras com tanta força como quando interpretas uma canção.
    Que venha 2022!
    Hora de esperançar! ❤️

    1. Carla querida, obrigado. sim, sigamos com esperança, bons propósitos e posicionamentos. beijos e feliz 2022 pra vocês! 🙂

  3. Elizabeth Fernandes de Andrade

    Texto forte, bem escrito e, mais do que isso, necessário.
    Convite à reflexão obrigatória, urgente. Que venha 2022 carregado de consciência e de reposicionamentos nos pontos escancarados nessa escrita.
    Bravo!
    Grande manifesto, bela gravura!👏👏👏❤️

  4. Marta Colombo

    Encantada e, também, emocionada com o texto. Encantada com a perfeição,coerência, clareza com que escreves; emocionada, com o conteúdo escrito no seu significado mais literal. A reflexão sobre tudo o que escreveste é muito necessária! Parabéns! Na espera por mais e mais textos!

    1. Marta querida, obrigado! …contente demais, aqui, com tua mensagem e apreciação. um grande beijo e o melhor 2022! 🙂

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