Em 1997 tive a felicidade de trabalhar com o virtuoso pianista gaúcho Adão Pinheiro. Quando o conheci, no Café Concerto Majestic da Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre, onde ambos fazíamos shows, eu ainda estava me afirmando como cantor. Ele, entretanto, já tinha uma longa estrada, tendo colaborado com importantes artistas, incluindo as cantoras Elis Regina e Leny Andrade, e integrava a “Jazz 6”, com Jorge Gerhardt, Luiz Fernando Rocha, Edinho Espíndola e Luis Fernando Verissimo.
Adão foi o primeiro “nome de peso” da nossa música, com o qual dividi o palco. Músico da noite, bom de papo, a conversa com ele jamais esfriava. Eu normalmente procurava me preparar ao máximo quando ia encontrar os músicos, chegava com o repertório, víamos as tonalidades, acertávamos as estruturas, passávamos cada canção umas duas, três vezes e pronto. O mesmo aconteceu com o Adão.
Pelos impressos que guardei, constato que estreamos em junho de ‘97 no Café Concerto Majestic e que já no mês seguinte fizemos essa apresentação no Foyer do Theatro São Pedro, nossa segunda experiência juntos. O concerto no Foyer aconteceu em 25 de julho, valendo como uma estreia. Eu já havia cantado ali, porém era sempre um desafio aquela plateia atenta e silenciosa, sobretudo pra quem estava acostumado a fazer música na noite, onde o público não ouvia com tanta concentração.
Adão foi um parceiro atento, escutava o companheiro, se guiava pela reciprocidade. E, apesar de eu naquele momento não ter nem perto da experiência que ele possuía da cena e do fazer musical, me encanta perceber o nosso envolvimento. Um bom exemplo disso é a segunda parte de “Stormy Weather”, depois do solo, em que uma sugestão dele no piano mudou tudo pra mim, o que fez com que improvisássemos completamente, dali até o final. Dá pra sentir um pouco do arrebatamento pela reação da audiência, por meu “yes!” de remate e pelo “muito bom” quase inaudível que ele – também surpreso e contente – profere no final dos aplausos. Aquilo foi um voo raro e bonito.
Esse espetáculo meio “jazzístico” foi desafiante não apenas pelo pouco tempo de maturação de nossa incipiente parceria – o que intensificou imprevisibilidades e improvisos –, mas também pelo estilo exuberante do Adão, reinventando o toque quase que a cada compasso. E, como é comum ocorrer em desempenhos ao vivo, mesmo que se almejasse soar melhor, aqui ou ali, sinto que nos aventuramos com ímpeto nesses saltos sem redes, percebo nossa sinergia e a prevalência das interpretações. Sem abrir mão das características individuais, nem de um processo intenso de troca, creio que foi nosso jogo que permitiu que atuássemos em consonância e chegássemos a alcançar com alguma desenvoltura a singularidade de uma colaboração como essa.
Há para mim outro motivo de enorme emoção e alegria nessa gravação: o choro da minha filha que se ouve em algumas passagens. Maria tinha apenas um ano e meio de idade e assistiu ao show no colo da Liginha, sua mãe. A presença da voz dela assinalou aquele momento como uma bênção, deixando tudo ainda mais bonito, significativo, especial.
Esse registro, feito em fita cassete a partir da plateia, tinha apenas o propósito de servir como uma referência de trabalho. Entretanto, por se tratar do único testemunho de nossos encontros nos palcos e também pelo fato do Adão não possuir uma discografia mais amplamente difundida, decidi compartilhar a maior parte do que chegou a ser gravado, deixando de fora também os dois números que fiz me acompanhando ao violão (não há registro do começo de “Body and Soul”, nem de “Travessia”).
Agora, isso se constitui num documento sonoro, simultaneamente testemunho dos primeiros anos de meu processo de amadurecimento como artista da canção e mais uma demonstração da magnitude da arte pianística de Adão Pinheiro, com quem eu tive, por um breve período, a honra, o privilégio e a alegria de partilhar a cena musical.
Valeu, Adão!
Imagens:
- Dudu Sperb / Adão Pinheiro (não se conhecem os fotógrafos)
- cartaz original
- programa do show
Para assistir ao clipe: https://www.youtube.com/watch?v=kjuX_reYcsY