Há muito, a humanidade conhece, teme e deseja os efeitos da embriaguez.
Na epopeia de Gilgamesh – antigo poema épico mesopotâmico, escrito por volta de 2000 a.c. em caracteres cuneiformes e preservado em tabuletas de argila – já apareciam descrições sobre a feitura do vinho. Nas narrativas de Homero, inúmeras são as passagens em que ele é mencionado. Na Odisseia, inclusive, Ulisses só consegue escapar de ser devorado pelo ciclope Polifemo, gigante de um só olho, após embebedá-lo e, então, cegá-lo. Essa era uma bebida tão importante para os gregos que, em sua mitologia, havia até mesmo uma divindade a representá-la: Dioniso (Baco para os romanos) era o deus do vinho – assim como da ebriedade, da festa, do delírio místico e do teatro.
O álcool possui vários poderes. Pode ajudar a relaxar ou perturbar. Inspirar ou desorientar. Alegrar ou enfurecer. Pode fornecer alívio, ajudando-nos a esquecer e a suportar a dor, e pode, ao mesmo tempo, transtornar ainda mais o espírito e afligir o corpo. Pode servir à celebração ou ao entorpecimento.
Quando estive na Alemanha, entre 1985 e 1986, me chamou a atenção o quanto se bebia por lá – bastante cerveja, no caso, e, em boa medida, por causa do clima. Notei, aliás, como era comum encontrar gente sozinha nos bares, coisa que por aqui eu não lembrava de presenciar tão amiúde. E reparei também que entre as pessoas de idade bebendo desacompanhadas havia, por vezes, senhoras.
Dessa época, guardei duas ilustrações, justamente de figuras femininas, que têm como tema a embriaguez e a solidão.
Na primeira delas, de 1985, uma mulher de meia idade, bem vestida, bebendo e fumando num balcão de bar, tem os olhos mareados pelo álcool, o olhar perdido e triste, numa expressão de devaneio. É provável que eu tenha me deparado com essa cena na cidade onde morei, pois anotei no canto, junto da assinatura, “Witz”, uma abreviatura de Witzenhausen, onde havia alguns estabelecimentos mais requintados, como a maioria dos bares que frequentei na Alemanha Ocidental.
O segundo desenho foi feito no ano seguinte. No final de 1985, passei o ano novo em Berlim com um amigo. Como fomos de carro até lá, adentramos em território da Alemanha Oriental (a DDR, Deutsche Demokratische Republik). Depois de chegar, e de passar mais uma vez pela aduana para entrar em Berlim Ocidental, desejávamos, é claro, conhecer também a parte oriental da cidade, do outro lado muro. Para isso, novamente era necessário atravessar a fronteira, dessa vez, porém, de metrô. Impossível descrever o impacto que isso teve sobre nós. Era inverno e a neve se amontoava densa pelas ruas. Lembro que, quando paramos na estação seguinte, já em Berlim Oriental, foi como se tivéssemos retrocedido a uma época remota, como se aquele trem fosse uma máquina do tempo. Saíramos de uma iluminada, moderna e dinâmica metrópole capitalista para, poucos minutos depois, na gare seguinte, penetrar num universo onde ainda era possível encontrar balaços na fachada de algum edifício, resquícios de disparos realizados durante a Segunda Guerra Mundial. Havia um ar de penúria; a atmosfera era carregada, e as pessoas, austeras, efeito provavelmente acentuado pelo frio e pelo cinzento constante do céu. Tínhamos permissão de estar ali apenas por algumas horas. As primeiras coisas que avistamos ao descer na Alexanderplatz foi a imensa e icônica torre de radiodifusão (a Berliner Fernsehturm) e, em seguida, mais adiante, o prédio do Berliner Ensemble, teatro fundado por Bertold Brecht que, na minha lembrança, estava pintado de roxo. Depois fomos num museu, do qual não lembro o nome, que apresentava uma exposição de arte contemporânea. Finalmente, em nossa caminhada, nalgum momento paramos num bar. Foi então que presenciei a cena melancólica e comovente que reproduzi na segunda ilustração: uma senhora – que guardava semelhanças com a outra da banda ocidental, porém mais alquebrada e desalinhada, com roupas simples e quase sem cor –, bebendo sozinha naquela tarde gris, parecia perdida na gana do esquecimento e tinha o olhar de alguém que buscasse simplesmente anestesiar momentaneamente os sentidos. Essa, creio, foi mais ou menos a minha sensação, embora eu possa ter tido uma percepção exageradamente melancólica em função do abalo que o contraste daquele cenário todo me causou. Hoje, mais interpreto o que desenhei do que me lembro do acontecimento em si. Guardei ainda, como souvenir, uma bolacha da cerveja que bebi naquele lugar e que compartilho, aqui, junto com as minhas ilustrações e com uma foto minha sentado em frente ao muro, do lado ocidental, próximo ao Portão de Brandemburgo.
Duas pessoas em realidades opostas, em lugares apartados do que, outrora, havia sido uma única nação. Nesse país partido, isolado e devastado pela guerra – que continuava ali presente como uma ferida que não cicatriza –, a dor da realidade talvez só pudesse ser suportada assim, com o socorro do álcool.
Nossas almas precisam de refúgio contra a dor. Hoje, no Brasil, também nos sinto assim, perdidos em meio à destruição e à desagregação, com um olhar semelhante de aflição e uma imensurável necessidade de alento. Nós também nos encontramos separados por muros, embora menos visíveis. Também sofremos por verdadeiras guerras contra a natureza e os animais, contra indígenas, negros, pobres, mulheres, gays, trans – enfim, contra grupos de pessoas às quais o poder abusivo e classista impõe ameaças, restrições, sofrimento. Em meio ao caos, ansiamos por alguma forma de (re)união que nos permita, quem sabe, tornar nosso país uma terra igualitária, um lugar de todas – e para todas – as identidades, onde a embriaguez decorra mais por conta da festa e da alegria do que pelo luto, desgosto e isolamento.
Ótimo texto, me identifiquei em todos os sentidos
Tive os mesmos sentimentos entre as duas Alemanhas na época do muro e, vivendo na Europa, sei o que representa o vinho, o bar e a solidão. Mas, principalmente, brasileira como tu, sinto também o peso de muros invisíveis que nos separam de tanta barbárie.
é isso, Teresita. sigamos com vinho e com vontade buscando os encontros e os cuidados mútuos. 🍷 ✨ beijos!
Excelente descrição e observações que nos remetem a realidade de nossas vidas que ora tomam o rumo da miseralibilidade do espírito, caso não haja uma tomada de consciência. Há que se refletir com urgência sobre o que queremos pra nós e sobre o mundo que queremos viver.
Loma querida, exato, consciência e ação. Sigamos buscando, da melhor forma. Um beijo. 🌿🌷
Dudu,
Teu texto é uma ilustração e teu desenho, um texto completo. Cinematográfico.
Filme que também assisti em Berlim em 1990, entre a queda do muro e a reunificação.
……E você está lindo na foto, preto no branco, desafiando o muro, sentado no limite do possível.
Brindemos a memória amarga da história alemã e da nossa. Que Baco nos proteja da solidão e devolva alegrias em nossas taças.
Miroca querida, adorei! 💜 Obrigado! 🌟🍷🌟
Texto lindo e lúcido! São lembranças e reflexões feitas, acredito, num mergulho de sobriedade.
eh, Dê querida, gracias! 🌿🌷🌿
Que história Dudu! Só conheci Berlim em 2020, viajei no tempo agora com tua narração, a foto, os desenhos, fiquei lembrando por onde passei me imaginando naquela época contigo. Me lembrou Asas do Desejo do Win Wenders e tu como um dos Anjos observando tudo e lendo os pensamentos dos mortais! Bela analogia com o nosso agora também! Sensacional!
bah, Hilton, que bacana isso, viajante mesmo. fico contente com essa tua apreciação. obrigado! abração. 🌟🌿🌷🍷
Muito agradável teu texto e também pertinente ao momento onde o álcool é o “medicamento” que muitos lançam mão no intuituito amenizar sifrmentos.
Agradável surpresa de conhecer esse teu talento. Pelo teor de tuas observações nota se que tens muita sensibilidade. Parabéns.
obrigado, Jorge, por ler, curtir e comentar. 🙏🏼 um abraço. ✨
O tempo não para
🍷✨
Lindo texto no contexto, Dudu! Ninguém imaginava naquele inverno tão gelado as transformações que teriam início menos de 4 anos depois e derrubariam aquele muro… Compartilho tuas emoções. Também desejo que em nosso país ainda possamos viver uma metamorfose (Morin) e superar, transmutar essas divisões.
verdade, Pedro. as transformações, aliás, estão sempre a nos surprennder. que venham mais e mais, pra mudar o que precisa ser mudado ou mesmo trazer de volta o que tínhamos de bom e que foi obliterado. obrigado por comentar. grande abraço!