Floresça como o lírio, diz a inscrição em latim.
Minha mãe se chamava Lilien, nome que deriva da palavra lilium, ou seja, lírio. Por isso, ela guardava com muito cuidado, desde os seis anos de idade, esse santinho de suave beleza de que tanto gostava, no qual pombas e ovelhas brancas rodeiam uma figura santa que rega a muda de um lírio em flor.
Além da melancolia quente que nos causam alguns objetos familiares, memorabilias tantas vezes contempladas e compartilhadas, o santinho que data de 1945, impresso na Itália — e que foi confeccionado, assim está escrito, como lembrança do Jubileu de Ouro da Irmã Maria Hilária, religiosa franciscana, uma freira que, imagino, atuava provavelmente no Colégio Bom Conselho, onde ela estudou —, provocou em mim, inicialmente, meditações sobre a pureza. Pureza que se traduz igualmente como transparência, candura, inocência, dignidade, leveza etc.
Abstraindo-se, porém, o cunho religioso do objeto, o que se percebe nele é igualmente a representação da “amabilidade”. Sua estampa simboliza, entre outras coisas, o quanto a vida necessita de cuidados para que possa se desenvolver em plenitude. É como um alerta de que existe a alternativa, em nós, da busca pelo aperfeiçoamento da sensibilidade e que ela se dará mais afortunadamente através da atenção que dedicarmos à vida que nos cerca e da qual somos constituídos.
Para isso, não há necessidade de sermos ou nos tornarmos beatos, pois o caráter divino da vida independe de religiões ou de quaisquer outros modos particulares de se entendê-la. O que ela nos confirma continuamente, com sua força e insistência em vicejar e se manter, é que todo ser é divino simplesmente por integrá-la, visto que ela é tudo e está em tudo.
Ao contemplar novamente essa imagem depois de muito tempo, tive também de pronto, simultaneamente, uma sensação de desagrado e tristeza ao associá-la, por oposição, à opressão da violência extrema e pública que vivenciamos e aturamos, dia-a-dia — flagelo que tolhe, ofende e contradiz qualquer sentido de conservação.
Florescer é medrar, resplandecer, crescer, desabrochar, desenvolver-se com prazer e com um tanto de serenidade; é dar-se ao mundo e a si mesmo. Porém, na condição de padecimento em que se encontra a humanidade, quantas vidas — de todas as formas —, conseguem desfrutar de seu próprio florescimento para poder compartilhá-lo com outras, fortalecendo assim a imprescindível cadeia de proteção da existência de que tanto necessitamos para sermos e permanecermos?
Atualmente, excessivas notícias atrozes nos chegam constantemente. O elevado número de mortes no Brasil, sobretudo de pessoas pretas e pobres, muitas vezes trucidadas pela força policial que, ironicamente, é um dos poderes públicos que mais deveria zelar pela vida; a destruição da natureza por trágicas ações humanas, como o desmatamento, a ação de substâncias venenosas ou incêndios que rapidamente aniquilam incontáveis formas de vida animal e vegetal, devastando biomas cuja recuperação será lenta e difícil (pois novos acontecimentos como esses ameaçam acontecer a qualquer momento), calamidades que colocam em risco nossa própria permanência no planeta; o genocídio de um povo inteiro, como a destruição da nação Palestina, de sua gente, seus bichos, seus espaços naturais e de moradia e convivência, enfim, um extermínio de quase literalmente tudo, e que vem acontecendo aos olhos do mundo sem que se consiga freá-lo, tudo isso, são apenas algumas das crueldades que abalam o emocional e a sanidade no mundo. Bem sabemos que há muito, muito mais a prantear e que as perversidades que nos assolam ferem profundamente o dom da vida, esse ao qual o pequenino cartão se refere e representa.
“Todas as ações repercutem”, escreveu uma vez uma amiga.
Nossa presença no cosmos, instituindo aquilo que podemos chamar de o “mundo dos humanos”, repleto de incidentes com catastróficos desfechos e atulhado de causas e consequências manipuláveis, perdura na história há um longo período. Tivemos tempo e episódios suficientes para constatar que o descaso em relação a diversas formas de vida, sobretudo pelos poderosos que se impõem e constrangem esse mundo, só nos encaminha mais intensamente rumo à própria aniquilação — assim como às outras espécies e espaços de vida na Terra, que formam a nossa proteção.
Perceber que não há como sobreviver sem o auxílio de outras vidas — em outras palavras, que é impossível perdurar sem amor — é uma chave pra se compreender algo igualmente fundamental: que, essencialmente, nenhuma vida tem mais valor do que outra, pois tudo depende de tudo. Essa é a engrenagem que o amor engendrou para manter a Vida. Se ela falha, perdemos a sustentação. Nada existe fora dessa insuperável teia, que pulsa, nascendo e morrendo, seguindo indomável e soberana. Nela, a diversidade inimaginável dos entes que a representam é mantida e movida sobretudo pela afeição.
Assim, a se crer na mensagem do santinho e na experiência prática e poética da vida humana, parece que a nossa melhor estratégia de sobrevivência será acender os laços — na dimensão que for — e cuidar de toda e qualquer espécie para que ela possa, como nós, existir, florescer e irradiar a sua natureza singular. Assim como um lírio.
Ideais existem para serem buscados, não para desistirmos deles.
E porque há esse belo costume de manifestarmos nossos desejos para o ano que chega, o meu é de que em 2025 evolua a consciência coletiva sobre a delicadeza da Vida e o nosso compromisso com ela: respeito, compaixão, generosidade e empenho no cuidado com todos os espécimes que aqui chegam e que daqui partem.
Feliz 2025! ✨❤️✨
Maravilhoso texto…
Abraço
🙏🏽 abraço grande, Marcelo! ❤️✨
Haja esperança!
🙏🏽✨🍀❤️
Sim, Dudu, a dimensão do ideal não pode mais ser a do indivíduo e o embrião de uma consciência coletiva, planetária, já vem se esboçando. Só não sei se vamos ter tempo suficiente para alterar a rota da humanidade e evitar o caos.
Você lembra bem que um exercício para a transformação é se inspirar na delicadeza estampada no santinho: buscar a pureza e a generosidade do lírio, que esbanja perfume por onde passa.
Outro exercício que proponho é se inspirar em pessoas como você, conectando sensibilidades e potenciais para mudanças.
De minha parte, -que levo o lírio no nome (Giglio)-, tenho mais que a obrigação de faze-lo.
Muito boa essa sua reflexão para um início de ano.
Miroca querida, é verdade que também carregas em ti o lírio! que lindo… vivam tuas palavras e teus sentimentos. que bom que estamos junt@s.
❤️✨
tá lindo o texto, dudo! “acender os laços” com atenção, generosidade ❤️
❤️❤️❤️
Que lindeza esse texto, Dudu! Um banho de consciência, delicadeza e sensibilidade! Que “os laços se acendam, na direção que for!” Me emocionei…
Marta querida..! 🙏🏽❤️✨
Ótimo texto! Que floreçamos novas flores, sensíveis e diversas, neste novo ano que chega! 🍀🌻❤️
axé! ❤️✨
puxa vida, que texto lindo, perfeito, realista e cheio de amor. obrigada por me fazer alguém melhor a cada troca contigo, Mukti. deus abençoe a ti e a todos que tu amas.
obrigado, Luciene. e que bom que foi a Mukti quem te enviou. ❤️✨