Jogo de Ginga – o futebol na canção

O FUTEBOL E EU (coitado)

Há alguns anos, li um texto de Clarice Lispector sobre futebol com o qual me identifiquei plenamente. Sobretudo quando ela menciona sua “ignorância apaixonada” por ele, dizendo, entre outras coisas, que só tinha assistido a um jogo de futebol ao vivo e que, por isso, sentia-se como se fosse “uma brasileira errada”. Aquilo descrevia perfeitamente minha própria relação com o esporte — eu que jamais pus os pés num estádio para assisitir a um jogo e só acompanho Copas do Mundo. Era preciso fazer alguma coisa, algo que me permitisse sentir “um brasileiro menos errado”.

Lembrei de canções sobre o tema, que conhecia e gostava, e decidi montar um show. Assim nasceu o espetáculo “JOGO de GINGA”.

O ANO DE 2013

Há onze anos, em 24 de julho de 2013, estreamos “JOGO de GINGA”, no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Naquela noite mal poderíamos imaginar que, embora estivéssemos muito contentes com o resultado de nosso trabalho e com todo o gás pra continuar, só voltaríamos a apresentá-lo uma única vez, pouco depois, no Anfiteatro Pôr-do-Sol, dentro da programação da Fifa Fan Fest.

2013 foi o ano em que o Brasil sediou a Copa das Confederações da Fifa, entre 15 e 30 de junho. Apenas um mês antes da nossa estreia, em 13 de junho, ocorreu uma manifestação que entraria pra história, levando milhões às ruas — inicialmente, um ato contra o aumento nas passagens de ônibus, mas que cresceu, Brasil afora, agregando mais pautas (e outros interesses), até se transformar numa cruzada contra a presidente Dilma, um tremendo bola fora com trágicas consequências para o país.

Naquele momento em que o governo brasileiro investia pesado no futebol, erguendo ou reformando estádios para sediar a Copa — e era bastante criticado por isso nas manifestações e fora delas —, os ânimos com o esporte não eram os melhores. Em função dessa conjuntura, nosso show de certo modo acabou soando um tanto “fora do tom”. Isso, somado aos custos pra se levar adiante um tal projeto, contribuiu bastante pra sua descontinuidade. Cheguei a pensar que os deuses do futebol (se é que existem), contrariados por minha pífia atuação como torcedor, talvez tivessem resolvido limitar a minha chance de reparação, tornando-a um acontecimento fugaz. Como a me dizer: não penses que uma “simples” elaboração artística poderia redimir de uma vez tamanha falta.

OS REGISTROS DE ÁUDIO E VÍDEO

Apesar de termos contratado um grupo de profissionais para filmar a estreia, aparentemente a câmera só foi ligada no final do espetáculo, registrando apenas o último número e o bis. Por sorte, eu havia pedido a Leo Bracht que captasse o áudio diretamente da mesa para obtermos uma melhor qualidade ao somá-lo às filmagens. Como ficamos sem elas, este acabou se tornando o único registro sonoro do show. Na tentativa de preservá-lo, entreguei esse material a outro grande profissional do som, Marcos Abreu. E foi uma façanha o que ele logrou realizar: mesmo com as limitações de um registro mono e sem tratamento, conseguiu chegar em um som límpido, bonito, vivo.

A partir desse áudio, decidi então tentar compor um vídeo, algo que desse uma ideia do que foi e, também em certa medida, do que ainda poderia ter sido aquele trabalho musical.

Por sorte, o fotógrafo James Santos esteve presente realizando instantâneos que, embora sem propósitos profissionais e captados a partir de uma câmera mais simples, são praticamente o único acervo visual que se tem daquele momento. Essas fotos, somadas aos dois vídeos que restaram, às fotos externas tiradas pelo querido e saudoso Claudio Etges, mais as artes criadas pelo cartunista Moa, foi o material que Alex Sernambi utilizou para criar a parte visual do vídeoclipe que agora disponibilizamos com a íntegra do show.

Como Um a zero (Pixinguinha/Benedito Lacerda/Nelson Ângelo), que abria o espetáculo, não chegou a ser captada, ao invés de suprimi-la optamos por usar em seu lugar uma gravação de estúdio dessa mesma obra que havíamos feito para fins de divulgação. Dessa forma, o que se apresenta no vídeo é o roteiro completo do show, em sua ordem original. A partir dos aplausos que se ouvem após essa primeira canção, tudo é o show ao vivo, praticamente na íntegra (subtraídas apenas algumas falas que julguei demasiadas).

UM POUCO SOBRE “O ANTES”

Várias pessoas participaram da produção desse espetáculo (os nomes podem ser conferidos nos créditos finais do vídeo).

Como é meu costume ao conceber um show, após definir o repertório parti para a escolha dos outros músicos, junto com Toneco da Costa, que além de tocar violão foi o arranjador. Novamente, a exemplo do que havíamos feito um tempo antes no show Arrabalero, optamos por um set com dois percussionistas. Desta vez, chamamos dois grandes músicos com características bastante diferentes, mas complementares, que se utilizavam de instrumentos diversos: Diego Silveira e Marcelinho Rocha. Com eles, nossa cozinha ganhou bastante em cor e diversidade. Nos ensaios houve uma incrível sinergia entre todos e rapidamente nosso som foi tomando forma. 

Quando ainda amadurecia a elaboração do show, procurei o querido e também saudoso Carlos Urbim para uma troca de ideias. Generoso e empolgado, ele fez algumas sugestões e me passou o contato do fotógrafo Ricardo Chaves que me enviou fotos suas de performances de jogadores em campo. Eram belas imagens que pensamos, inicialmente, em projetar num telão como fundo de cena. Porém, acabamos apostando, junto com a iluminadora Claudia de Bem — que criou um espaço cênico apenas com a luz —, na atenção do público sobre nós e a música. Optando, desse modo, por algo mais sóbrio, diminuímos a amplidão do palco ao concentrar o foco no quarteto, deixando o resto na escuridão.

A ESTREIA

O futebol é, por excelência, um tipo de evento em que o inesperado faz sua surpresa constantemente. Na hora da ação, mesmo o melhor jogador pode ter uma atuação aquém das expectativas, um placar pode virar de forma dramática, repentinamente, e nunca, nunca mesmo se tem por certo quem sairá vencedor. Até os últimos segundos, tudo pode acontecer.

Numa apresentação musical, por se tratar igualmente de um campo onde o espírito — ou seja, o ânimo, a energia — é quem mais define o que acontece, ocorre algo similar. Por isso, nesse show, a exemplo de uma partida de futebol, fomos driblando os contratempos que uma estreia sempre traz.

Naquela noite muito fria, uma quarta- feira, dia de jogo, tivemos a sorte e a alegria de atrair um público significativo em quantidade e qualidade. Havíamos ensaiado e cuidado com muito empenho dos mínimos detalhes. Mas tratava-se da primeira exibição do espetáculo — e daquele repertório. Estávamos emocionados e um tanto ansiosos, preocupados em fazer o melhor possível naquela hora e pouco. Além disso, eu precisava, pelo menos em parte, recuperar o investimento financeiro concernente à toda a produção, aos cachês e ao aluguel do teatro. Eram vários os cuidados. E, acima de tudo, havia o profundo desejo de que a audiência saísse contente do teatro, de que aquilo resultasse num belo espetáculo inaugural.

Por isso, assim como numa pelada, a vontade de acertar e a excitação do momento fizeram com que, aqui e ali, pintassem vacilos. Porém, apesar dessas pequenas faltas, foi de fato uma linda estreia. Creio que isso é perceptível, tanto pelo som que conseguimos realizar, como pela resposta das pessoas à nossa atuação entusiasmada e comprometida com o jogo e a ginga.

UM DOCUMENTO AUDIOVISUAL

Hoje, quando temos novamente a possibilidade de apreciar aquele acontecimento, a melancolia pelo fato de não termos seguido com o espetáculo fica em parte abreviada. Agora, pelo menos, possuímos esse documento, feito a partir de uma gravação que — se não é a ideal, pelo que ainda poderíamos lapidar em nossa performance musical com as repetições e o consequente amadurecimento — revela com honestidade a natureza de nossa música e sua potencialidade, além de testemunhar um tanto da empatia que se estabeleceu com o público. Infelizmente não houve uma captação direta do som da plateia e, por isso, não se ouvem todas as interações — como, por exemplo, os gritos quando cantamos os hinos do Inter e do Grêmio etc.

Finalmente, creio que o pequeno compêndio de canções que interpretamos nessa apresentação ajuda a salientar a importância do vasto cancioneiro sobre futebol, algo que eu imagino que não ocorra em tão grande escala e com tanta veemência em outras culturas, mundo afora. Ainda mais apresentando obras de compositores da dimensão de Milton Nascimento, Gilberto Gil, Chico Buarque, João Bosco e Aldir Blanc, Moraes Moreira, Jorge Ben Jor, Jackson do Pandeiro, Gonzaguinha, Lupicinio Rodrigues, Lamartine Babo, José Miguel Wisnik, Wilson Baptista, Zeca Baleiro etc. Essa era outra coisa que eu tencionava evidenciar quando criei esse show que considero singular — digo singular por não ter notícia de espetáculos similares, centrados nesse tema.

Nesse mergulho cênico no universo futebolístico — no qual, com enorme prazer, performei o encantamento tão comum ao povo brasileiro com uma de suas manifestações culturais mais essenciais —, sinto que expressei de modo intenso essa paixão. Fiz as pazes comigo mesmo ao me transformar num torcedor, mesmo que momentaneamente, exaltando jogadores, times, o jogo em si e as vivências ligadas a ele com uma devoção que jamais tive antes, nem depois. Torço ainda para que, com esse breve episódio de minha atividade musical, eu tenha acertado minha dívida, pelo menos em parte, e emendado minha parcela de brasileiro errado.

Espero também que as pessoas se alegrem ao ouvir essas canções, como foi para nós executá-las. Para uma maior imersão, aconselho a audição com fones de ouvido.

A quem se aventurar, um bom espetáculo!

Eis o link pra assisitr ao videclipe no Youtube: www.youtube.com/watch?v=lpq6G0XOQcI

Marcelo Rocha, Toneco da Costa, Dudu Sperb e Diego Silveira
foto: Claudio Etges
foto: James Santos
foto: James Santos
foto: James Santos
fotos: James Santos
fotos: James Santos
foto: James Santos
fotos: James Santos
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2 comentários em “Jogo de Ginga – o futebol na canção”

  1. Hilton Lebarbenchon

    Dudu eu tenho uma relação com o futebol igual a sua era. Mas não tenho nada pra me redimir, você com tudo isso que fez com certeza está redimido! hehehe!

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