Artes, histórias e ideias

Medeia

Em 1986 concluí o Bacharelado em Desenho pela UFRGS. Eu havia voltado da Europa há poucos meses, onde tive a sorte de apreciar em Viena a exposição “Traum und Wirklichkeit Wien – 1870/1930” (“Sonho e Realidade”), que reuniu o maior conjunto de pinturas de Gustav Klimt, desde sua morte. Além disso, tinha visitado vários outros museus e visto de perto muitas das obras que conhecia apenas através de reproduções. 

Quando chegou a hora de definir meu TCC, fui obrigado a fazê-lo rapidamente. Isso porque me perdi nos prazos. Quando regressei, no começo de abril, meu pai estava doente e veio a falecer pouco depois, em julho. Enredado naqueles dias sombrios e num estado de alheamento, só me dei conta de que podia terminar o curso — e que eu precisava urgentemente de algo que tomasse meu tempo e me tirasse daquele estado de tristeza — quando já começava o novo semestre e todos tinham, inclusive, escolhido seus orientadores. Ao me deparar com a questão do tema, resolvi buscar inspiração nos estudos daqueles anos de formação.

Curiosamente, as duas cadeiras que me marcaram mais profundamente na faculdade não foram as relativas a fundamentos das artes visuais, de sua história, ou mesmo de práticas e técnicas, mas sim da área da Filosofia: “História das ideias” e “Filosofia da Arte”, ambas ministradas por uma professora singular, de quem só lembro o primeiro nome, Muriel. 

Em suas apaixonantes classes, seguindo uma cronologia do teatro, lemos e relemos peças de um período que ia desde as tragédias gregas até Pirandello. Entre outras, tive contato pela primeira vez com a obra de William Shakespeare. Isso foi de tal forma marcante pra mim que pintei o monólogo de Hamlet, imenso, na parede do meu quarto, chegando mesmo a decorá-lo.

Nos deixando envolver por todo aquele universo literário — de histórias e concepções de mundo, daquela humanidade toda —, tomados pela vitalidade da vontade juvenil, pelo desejo de ampliar nossas percepções, conhecimentos e entendimentos, eu e meus colegas buscávamos na potência dos sentidos possibilidades de mudança que queríamos e precisávamos alcançar e implementar em nossas vidas.

As aulas de uma dessas cadeiras aconteceram justamente durante um período de 1984 em que se estabeleceu uma greve importante na UFRGS, na qual tudo parou. Nós, porém, excitados e comprometidos como estávamos, decidimos seguir nos encontrando com a professora num bar próximo do I.A. e, assim, demos continuidade àqueles estudos. No final, fizemos uma grande festa à fantasia em que cada pessoa compareceu caracterizada como uma das protagonistas das nossas leituras — eu fui como o Pai de “Seis personagens à procura de um autor”, de Pirandello. E foi exatamente nessas leituras que me inspirei para realizar o meu trabalho de conclusão do curso. Considerando-as como representações simbólicas, queria adentrar e interpretar o universo de certas personagens icônicas, a maioria proveniente da literatura. 

A técnica que utilizei foi o desenho sobre cartão, executado com diversos materiais (lápis, guache, caneta dourada e prateada, nanquim, pastel, lápis de cera, tinta dourada e prateada etc.), em grandes dimensões (a folha inteira, retangular, tinha em torno de 110cm X 80cm). Minha orientadora foi Roseli Jahn, artista e professora. Sobretudo por sua convicção em minha capacidade de executar aquilo ao que eu me propunha, ela me estimulou a seguir na concretização da tarefa que eu mesmo, aparentemente sem me deixar intimidar pela dimensão do desafio, me impus a realizar num prazo tão pequeno. 

E foi assim que produzi sete desenhos baseados nos seguintes personagens: “Medeia” (Eurípedes), “Ofélia” (Shakespeare), “Narciso” (mitologia grega), “O Prisioneiro” (Erico Verissimo), “Dionísio” (mitologia grega), “A Prostituta” (Jean-Paul Sartre) e o “Punk” (figura emblemática da contracultura dos anos ’70 e ’80). A influência da obra de Klimt resultou na utilização de dourados e prateados e também na criação de uma oitava imagem, “O Sonho”, uma alegoria inspirada num esboço seu, para a obra “Medicina”, de um corpo nu de mulher flutuando. Cheguei a apresentar esse oitavo painel à banca, porém apenas como um exercício, uma vez que ele não me agradou e que não havia mais tempo para tentar refazê-lo.

Finalmente, o trabalho foi bastante apreciado e acabei recebendo a nota mais alta. E o que me deixou particularmente contente foi o fato do professor Carlos Pasquetti (recentemente falecido) — que também fazia parte da banca e que havia, um tempo antes, não sem razão, me cobrado uma maior dedicação nas minhas elaborações estéticas —, ter se surpreendido, avalizando o resultado com entusiasmo. 

Todo esse processo, no qual executei de modo intenso e organizado um projeto de obras e ideias, com gozo e imersão profunda — tão necessários à prática da criação —, me mostrou de forma concreta as possibilidades de um caminho pessoal dentro do universo das artes visuais. 

Porém, foi justamente a partir dali que, encerrando um ciclo, eu decidi apostar e praticar minhas habilidades noutra área de produção artística, algo que igualmente fazia parte da minha vida, me envolvia e seduzia havia bastante tempo: a música. 

Mas isso já é outra história…

Ofélia

Ofélia – detalhe

Narciso
Narciso – detalhe
Narciso – detalhe
O Prisioneiro
Dionísio
Dionísio – detalhe
A Prostituta
A Prostituta – detalhe
O Punk
O Punk – detalhe
O Sonho
Dudu – Dionísio

11 comentários em “Artes, histórias e ideias”

  1. Kundry Lyra Klippel

    Bah, cara, tu és um baita artista, impressionante!!!
    Adorei tua narrativa sobre o trabalho final do Belas e os louvores muito merecidos! Parabéns!!!

  2. Dudu, realmente muito talento em várias expressões de arte, com muita criatividade, captando a partir da literatura, a expressão dos personagens. A vida te encheu de dons e tu os honras!

  3. Renato Mendonça

    Não sabia desse teu outro talento. Parabéns! O texto também, ótimo. Contextualiza e nos facilita a entrada nesse teu universo

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